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Venezuela e a maldição do petróleo: para entender a crise venezuelana e o fim da Quinta República


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A Venezuela, muito antes da revolução bolivariana de Chávez e Maduro, já havia plantado a semente de suas agruras, que na pior das hipóteses pode culminar com uma guerra civil e a intervenção militar por parte de países estrangeiros.  No epicentro de tudo, o petróleo, mas não exatamente como as muitas teorias de conspiração nos querem fazer acreditar.

Em novembro de 2011 a Venezuela tornou-se o país com as maiores reservas de petróleo do mundo com a certificação de 297 bilhões de barris, ultrapassando a Arábia Saudita cuja reserva certificada girava em torno de 266 bilhões de barris. Mas isso não foi exatamente um fato surpreendente: já em 1920 a Venezuela era o maior exportador mundial do produto, cuja exploração estava quase que totalmente sob controle de companhias estrangeiras.

Desde essa época a história da Venezuela está intimamente ligada à mudança de humores do “ouro negro”. Depois de um período de estabilidade política e econômica, a eclosão da Segunda Guerra Mundial levou ao declínio da exploração petrolífera e a tentativa por parte do governo venezuelano de modificar os contratos com as companhias estrangeiras de petróleo, o que levou o presidente Isaías Medina ser deposto por um golpe militar em 1945. Em 1947 o presidente Rómulo Gallegos tentou implementar uma reforma agrária e aumentar os royalties estatais sobre o petróleo: foi deposto por um golpe de estado em 1948. Seguiu-se uma ditadura liderada por Marcos Jiménez, que também foi derrubado em 1958.

As décadas de 60 e 70 foram marcadas por uma relativa estabilidade – embora não faltassem tentativas fracassadas de golpes – tendo as relações com os EUA representado um importante papel na vida econômica do país. Foi um período de grande prosperidade, mas a semente da maldição venezuelana continuaria seu processo de germinação. Se na década de 60 os governos venezuelanos chegaram a investir em novos projetos sociais e econômicos – especialmente na diversificação de sua base econômica, totalmente fundamentada na indústria do petróleo, os anos 70 impuseram uma armadilha mortal: a eclosão da guerra árabe-israelense em 1973 e a Revolução iraniana em 1979 fizeram disparar os preços do petróleo, possibilitando à Venezuela que quadruplicasse seus lucros com a venda do produto.

Uma onda consumista sacudiu o país que, entretanto, era totalmente dependente das importações para abastecer seus mercados, principalmente os de bens de consumo. E como a venda de petróleo era mais que bastante para fazer a balança comercial pesar para o lado venezuelano, dissiparam-se os discursos daqueles que alertavam para a necessidade de investir em bens de capital para diversificação da economia. A Venezuela tornava-se cada vez mais dependente do petróleo, e estava gostando disso…

A renda petroleira também serviu para financiar o Estado, que investiu pesadamente na ampliação dos serviços públicos e também na nacionalização das indústrias petrolíferas (1976), o que fez com que o país aumentasse absurdamente seus gastos públicos, multiplicando sua dívida externa por dez, entre os anos de 1974 e 1980.

Como em qualquer maldição, a alta no preço petróleo foi uma faca de dois gumes, porque se de um lado alavancou os lucros com as vendas, por outro fez com que os juros internacionais elevassem em proporções ainda maiores. O resultado dessa combinação (aumento do consumo, aumento nos gastos públicos, aumento da dívida externa, aumento dos juros internacionais) foi a eclosão de enormes bolhas inflacionárias no pior momento possível: no início da década de 80, quando grande parte dos importadores de petróleo passaram a diversificar suas compras a produtores que não pertenciam a OPEP. Isso fez com que o preço do barril de petróleo, que em 1979 chegou a 120 dólares (valor atualizado), passasse a custar pouco mais que 40 dólares, gerando uma grave crise econômica na Venezuela: a inflação disparou, o salário real teve uma diminuição drástica e houve uma intensa fuga de capitais.

Mergulhado em uma grave crise política e econômica, em 1988 o país suspendeu o pagamento da dívida externa e firmou uma parceria com o Fundo Monetário Internacional com o objetivo de conseguir um empréstimo de 4,5 bilhões de dólares. Mas a contrapartida era pesada: desvalorização cambial, redução dos gastos públicos, redução do crédito, congelamento dos salários e aumento de preço de gêneros de primeira necessidade e dos transportes públicos. Dessa forma, à crise econômica somou-se o agravamento da crise social, fazendo com que a insatisfação dos setores mais pobres da sociedade atingisse o seu limite. Em fevereiro de 1989 eclodiram violentos protestos em todo país. Durante dias subsequentes as manifestações tomaram as ruas de Caracas e de outras cidades, marcadas por saques, barricadas e enfrentamentos entre a população e as forças de segurança, com centenas de vítimas fatais e milhares de feridos. O evento ficou conhecido como Caracazo, e abriu caminho para a Revolução Bolivariana, conduzida por Hugo Chavez.

Após quase 10 anos de instabilidade econômica e política – em que não faltaram a tentativa de dois golpes de estado (um deles liderado pelo próprio Chavez), o impeachment de um presidente por corrupção e violentas manifestações populares, Hugo Chavez é eleito presidente em 1998, inaugurando a chamada “Quinta República”.

E, se no aspecto social e político seu Governo foi radicalmente diferente de seus antecessores, pela inclusão social, com iniciativas para promover uma melhor distribuição de renda e a redução da pobreza, a relação com o petróleo não mudou, pelo contrário, aprofundou-se cada vez mais a dependência da economia venezuelana ao maldito ouro negro. Na busca por manter os programas sociais financiados pela exportação do petróleo, o governo foi forçado a adotar uma política de desvalorização da moeda, o que afinal acabou provocando a redução dos efeitos na melhoria da qualidade de vida dos venezuelanos, já que o país continuava extremamente dependente de produtos importados, inclusive os de primeira necessidade, como alimentos e produtos de higiene pessoal.

Nesse ínterim é preciso fazer uma observação, que torna compreensível a razão pela qual os efeitos da riqueza do petróleo, que poderiam ter sido fator para promoção e aceleração do desenvolvimento econômico, jamais tenham sido multiplicados de forma adequada na sociedade venezuelana. Ao contrário de outros recursos econômicos, que demandam a confluência de muitos e diversificados atores, as atividades petrolíferas – da extração ao refino – dependem de um pequeno número de investidores, concentrando a riqueza na mão de poucos. Por outro lado, o ingresso das receitas do petróleo se dá em forma de royalties, que vão diretamente para o cofre do Estado, tornando-o o principal e decisivo condutor da economia. Segundo Celso Furtado (in “Ensaios sobre a Venezuela: subdesenvolvimento com abundância de divisa”, 1957) esta foi a razão pela qual a Venezuela, ao fundamentar toda sua economia na indústria petrolífera, acabou aprisionada num modelo estrutural frágil e de característica subdesenvolvida.

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Não faremos aqui uma avaliação crítica dos governos bolivarianos, limitando-nos à apresentação dos fatos econômicos que corroboram as teses acima apresentadas:

1 – Dependência econômica da exportação de petróleo: Segundo a OEC, em 2017 a Venezuela exportou US$ 27,8 Bilhões, dos quais 79,8% foram de petróleo bruto e 10,3% de refinados de petróleo, ou seja, mais de 90% de suas exportações. Durante os últimos cinco anos, as exportações da Venezuela caíram a uma taxa anualizada de -22,2% (153 bilhões de dólares em 2012 para 27,8 bilhões de dólares em 2017).

2 – Dependência das importações – Segundo dados da Fedeagro (Associação de Produtores Agropecuários da Venezuela), 70% de tudo que se consome na Venezuela são importados. Milho (principal ingrediente no preparo das refeições no país), arroz, feijão, macarrão, derivados de trigo e de soja, leite, açúcar, papéis, medicamentos e (pasmem!!!) até gasolina são importados para suprir a demanda interna.

3 – Falta de diversificação da economia – Segundo a Confederação de Industrias da Venezuela, entidade que representa o setor industrial, em 2018 haviam apenas 3.200 empresas no país, das quais 700 haviam fechado as portas naquele mesmo ano.  Apenas para efeito comparativo, no Brasil (dados do IBGE de 2016) existem mais de 300 mil unidades industriais gerando cerca de 7 milhões e meio de postos de trabalho diretos. Com um território de 916 445 quilômetros quadrados, dos quais 24,09% são agricultáveis (cerca de 220 mil km²), a Venezuela produz hoje apenas 25% dos produtos agrícolas que consome, contra 70% de uma década atrás.

4 – Índices econômicos – Em 2018 a inflação venezuelana atingiu a estratosférica marca de 1,3 milhão por cento!!!! O salário mínimo – mesmo depois de sucessivos acréscimos em 2018 e um aumento de 300% anunciado por Maduro em janeiro de 2019, não passa de 18 mil bolívares, o equivalente a cerca de R$ 77,00 ou 21 dólares americanos, o que mantém os quase quatro milhões de trabalhadores que o recebem em situação de pobreza extrema, segundo a classificação das Nações Unidas. Dessa forma, “ficar em casa dormindo acaba saindo mais barato que sair para trabalhar”…. E essa forma de pensar talvez explique em parte a elevada taxa de desemprego, que vem sendo estimada pelo FMI em 36% até 2022. O PIB venezuelano recuou 50% entre 2013 e 2018 e a situação foi classificada pelo FMI como uma das maiores crises econômicas registradas na história. No mesmo período, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano da ONU) venezuelano registrou um significativo retrocesso, fazendo com que o país perdesse 16 posições no ranking mundial. Desde 2012 apenas Síria, Líbia e Iêmen, países envolvidos em prolongadas guerras, registraram quedas tão acentuadas quanto a Venezuela.

5 – A Indústria Petrolífera. Benção e maldição, a indústria do petróleo na Venezuela parece que atingiu um ponto de inflexão onde não há mais retorno. Ou seja, se a economia venezuelana sempre acompanhou as oscilações do preço do petróleo, beneficiando-se quando em alta e retraindo-se quando em baixa, o atual estado de coisas deve manter o país sul-americano no andar de baixo ainda durante algumas décadas. Isso porque não apenas os preços do petróleo permanecem em baixa como também a capacidade de produção da indústria venezuelana foi seriamente atingida, e nesse caso não é exagero atribuir a culpa à política de nacionalização do petróleo promovida por Hugo Chavez a partir de 2007. Em primeiro de maio daquele ano a Venezuela passou a controlar todas as operações petrolíferas no país, entregando à PDVSA a gestão exclusiva da exploração do petróleo. Gestão que foi caracterizada pelo alto grau de ingerência do Estado, demissões em massa e contratação de pessoal pouco qualificado (mas leais ao chavismo), escândalos de corrupção e pelo uso irresponsável dos recursos advindos com as receitas petrolíferas para a promoção das políticas de Estado.

Dessa forma, os investimentos necessários para mantê-la em funcionamento em níveis produtivos não ocorreram, especialmente durante o Governo Maduro. Quando Chávez assumiu pela primeira vez o país, em 1999, a produção era de mais de 3 milhões de barris por dia; hoje, é de cerca de 1,5 milhão. Segundo dados da OPEP é o pior nível em 33 anos. Os esforços por manter a produção ou explorar novas áreas também caíram de forma dramática. Em 2013, a média de brocas operativas era de 79, passando a 28 em 2018. Também no que se refere ao refino, as condições aproximam-se de um colapso total: do parque de refino venezuelano com capacidade instalada de 1,8 milhões de barris por dia, apenas 23% está em funcionamento.

De acordo com Monaldi (in “La espiral de la muerte de PDVSA” – 2017), para que a Venezuela recupere o nível de produção de 1998 seria necessário fazer investimentos de cerca de US$ 20 bilhões por ano, nos próximos dez anos, ou seja, um montante de 200 bilhões de dólares!!!!

Juan Guaidó

O auto-proclamado presidente interino Juan Guaidó. Com apoio dos EUA pode levar a Venezuela a um novo período de estabilidade econômica. Mas dificilmente poderá promover uma mudança profunda na estrutura econômica que livre a Venezuela da maldição do petróleo.

 

Eis aí o ponto crucial da questão! A queda de Maduro e a ascensão de Guaidó com o apoio dos Estados Unidos e seus aliados viria de encontro à imposição técnica e financeira de reabrir a indústria venezuelana de petróleo às empresas estrangeiras, únicas capazes de realizar os investimentos necessários à sua recuperação.

O retorno da Venezuela – agora alinhada aos interesses norte-americanos – ao rol dos grandes exportadores de petróleo também poderia ser usado para equilibrar a queda-de-braço com a OPEP, especialmente em relação aos sauditas e seus aliados regionais e o Irã.

Para o povo venezuelano a troca também não seria ruim, embora não se possa asseverar que não será traumática. Com o retorno dos investimentos e a entrada de divisas fortes, os níveis de desemprego deverão recuar e o aquecimento da indústria petroleira terá um efeito cascata nos demais segmentos da economia. Para um país que já foi o mais rico da América do Sul e que produz apenas 30% do que consome, o mercado interno venezuelano, tanto de bens de consumo como de bens de capital também é um prêmio considerável, que certamente atrairá investidores dispostos a “ajudar” a Venezuela.

A queda de Maduro e o fim da Quinta República é um fato consumado. É só uma questão de tempo, pouco tempo. E embora sejam muitas as teorias conspiratórias, não restam dúvidas de a principal causa da crise venezuelana é interna e decorre da manipulação irresponsável da economia, o uso do petróleo como elemento da política de Estado e a manutenção da crônica dependência do petróleo do país. E dessa maldição nem mesmo os governos bolivarianos conseguiram escapar: como bem disse Freddy Bernal, influente colaborador de Maduro: “Temos 19 anos de revolução, já somos responsáveis pelo bem e pelo mal”, ao reconhecer que “a governabilidade foi perdida”.

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